segunda-feira, 4 de março de 2013

Entrevista de Huberto Cunha ao Museu A CASA sobre direitos culturaia




ENTREVISTA - FRANCISCO HUMBERTO CUNHA FILHO
 
“Não podemos ser escravos do passado”
Humberto Cunha é doutor em direito, professor da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e integra o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais.
 
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O que são direitos culturais?
Direitos culturais são direitos relacionados à cultura. Observando as estruturas legais já existentes e tentando identificar um núcleo para os direitos culturais que possa ser comparado aos direitos já tradicionais, como o direito civil, o direito penal etc., chegamos à conclusão de que os direitos culturais são os direitos relacionados a três grandes áreas: arte, memória coletiva e fluxo dos saberes, sobretudo saberes informais.
Há vários conceitos muito próximos dos direitos culturais, mas, com eles, não se confundem, como, por exemplo, a ideia de “culturalismo jurídico”, segundo a qual todo o direito resultaria da cultura - no sentido antropológico do termo. Trata-se de uma ideia bastante abrangente. No sentido jurídico, porém, há que ter limitações, pois os direitos precisam ser exercíveis: uma vez violados, devem ser recompostos.

Quais marcos legais definem juridicamente os direitos culturais?
A história dos direitos na história humana é recente, especialmente se tomarmos a ideia de direito como um bem jurídico que, uma vez incorporado ao patrimônio, pode ser defendido contra tudo e contra todos, inclusive contra o Estado.
Ter direitos, inicialmente, significava ter direitos contra o Estado, pois quando o Estado apareceu na história da humanidade, era um Estado Absoluto, um Estado frente ao qual não se tinha direitos. Hobbes já dizia isso no sentido de que o único direito que se tinha era o direito à segurança e, para tanto, se delegavam todos os demais direitos.
Mas a própria ideia de Estado é recente, advinda dos Acordos de Vestfália. Historicamente, sempre existiram estruturas políticas, mas nem sempre tais estruturas formavam um Estado – Aristóteles traça uma ideia evolutiva dessas estruturas: a família, o clã, a tribo, as cidades-estados. A ideia de Estado como um ente político que tem poderes em um determinado território e sobre uma determinada população, data de pouco antes do descobrimento do Brasil.
As primeiras declarações de direitos surgiram, mais ou menos, do período da Revolução Francesa, em 1789, ou um pouquinho antes, em 1776, com a Declaração de Virgínia. Essas primeiras declarações vislumbravam, especificamente, as liberdades públicas e os direitos de participação política para aqueles que eram considerados cidadãos.
Em 1948, no desenrolar da conquista por direitos, surgiu a Declaração dos Direitos Humanos, na qual já há, em dois artigos, a menção aos direitos culturais: a primeiraé a de que todos têm a prerrogativa de participar da vida cultural de sua comunidade; a segunda têm especificações mais precisas, citando direitos autorais e de criação artística.
Na década de 1960, na França, houve um encontro internacional reunindo juristas ligados ao estudo dos direitos culturais. Desde a década de 1960, portanto, há a convicção de que os direitos culturais fazem parte dos chamados direitos humanos ou direitos fundamentais.
No Brasil, a Constituição de 1988 trouxe expressamente o termo “direitos culturais” ao afirmar, em seu artigo 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais”.

Em outra oportunidade, você já afirmou que, às vezes, o direito tradicional causa empecilhos à atividade cultural. De que forma o direito está sendo repensado de modo a se tornar, ao contrário, um suporte para o desenvolvimento das atividades da cultura?
Vou dar um exemplo que acredito ser claro. Um dos mais importantes direitos culturais relacionado ao campo das artes é o da liberdade de criação. Porém, o direito tradicional tinha, constantemente, o intento de censurar essa liberdade. No Brasil, a censura era estatalmente estabelecida, com órgãos especialmente designados para praticá-la, até que a Constituição de 1988, no ato das disposiçõestransitórias, determinou que servidores que haviam feito concurso para censor escolhessem, num determinado prazo, outra profissão que fosse compatível com a sua formação. Assim, a nova Constituição decidiu não mais admitir as ideias de censura, controle ou supressão.
O direito antigo não percebeu a necessidade de uma dimensão autonômica do setor cultural. Essa dimensão autonômica é indicada, em minha opinião, pelo próprio texto constitucional, no artigo 5°: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Por outro lado, na seção específica da cultura, é dito que o poder público deve fomentar a cultura. Então, geralmente, há um cruzamento nessa relação de fazer o fomento e controlar os conteúdos e resultados da atividade cultural. Porém, sobretudo na dimensão da criação artística, não pode haver esse controle, pois a censura foi abolida pela própria Constituição. Assim, as estruturas de regência e de fomento da cultura devem ser as mais autonômicas possíveis.
O direto antigo, tradicional, não percebe isso. Não percebe, por exemplo, que a gestão pública migrou de uma concepção aristocrática da cultura para uma concepção democrática. Até hoje, encontramos a ideia de que os conselhos de políticas culturais só podem ser compostos por “pessoas de elevado saber cultural”, quando, pelo texto da Constituição, por um direito novo relacionado à cultura, essa ideia não é mais pertinente. A ideia atual é a de demonstração da diversidade das expressões culturais, e essa diversidade deve estar presente nos conselhos de cultura.

Para esse novo direito, a distinção entre cultura erudita e popular perde o sentido?
Exatamente. A Constituição brasileira, promulgada no dia 5 de outubro de 1988, estabeleceu, de forma expressa, princípios de regência para diversos setores que ela disciplina: administração pública, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, educação, energia nuclear. Inicialmente, para a cultura, ela nada disse. Mas, obviamente, nenhum setor da disciplina jurídica é disciplinado sem base em princípios, e um dos princípios que se pode deduzir da normatividade é o do pluralismo cultural. O conteúdo desse princípio é o de que não há hierarquia nessas tradicionais divisões entre cultura erudita e popular. Há espaço para todas na medida em que cada uma pode contribuir para a livre expressão cultural no Brasil.

De que forma o Estado brasileiro pode fomentar as práticas culturais e estabelecer garantias ao desenvolvimento das atividades no campo da cultura? Como isso vem sendo feito?

A Constituição de 1988, ao disciplinar o setor da cultura, praticamente desnorteou a regência tradicional desse campo. Ela introduziu novos elementos e o curioso é que, de 1988 para cá, não deixou de introduzir.
A seção da cultura era composta por apenas dois artigos, o 215 e o 216 – recentemente, foi acrescentado mais um, o 216-A –, embora existam vários artigos complementando esses dois ou servindo de base para eles. Tais artigos sofreram, de 1988 para 2013, três alterações. Em minha opinião, três alterações sobre dois artigos de uma constituição é algo muito significativo, pois revela a importância que esse setor passou a ter. Se fosse um setor sem importância, não sofreria mudanças, pois ninguém prestaria atenção. E o curioso dessas três alterações é que elas estabeleceram garantias aos direitos culturais exatamente no que se refere aos instrumentos para a sua concretização.Portanto, tais garantias vêm sendo construídas, inclusive do ponto de vista constitucional.
A primeira emenda que alterou a Constituição foi a que estabeleceu a possibilidade de cada estado do Brasil e do Distrito Federal criarem uma vinculação de até 0.5% de sua receita líquida para um fundo da cultura. Essa emenda é mais um indicativo, pois as necessidades são bem maiores, mas já é um avanço ao estabelecer uma garantia pecuniária mínima para um setor socialmente muito importante, mas politicamente frágil. A segunda emenda estabelece que as políticas públicas de cultura devem ser políticas de Estado e não de governo. Isso é feito através da instituição do Plano Nacional de Cultura. A terceira, mais recente, estabeleceu o Sistema Nacional de Cultura.
Todas essas estruturas constitucionais foram antecedidas por instrumentos que a prática demonstrou inadequados ou vencidos em seus méritos e que, portanto, precisavam ser aprimorados. A primeira grande ideia resultante do comando constitucional que afirma que o Estado deve criar fomentos à cultura foi a das leis de incentivos fiscais. Em dado momento, essas leis demonstraram inadequações que precisaram ser corrigidas por meio do fortalecimento dos fundos de cultura e do sistema de editais. No campo da memória coletiva, houve acréscimos às legislações antigas, com o objetivo de amparar mestres da cultura, grupos e comunidades culturais de natureza coletiva.
Dizendo assim, parece muita coisa, mas, infelizmente, a prática demonstra que todos esses mecanismos têm defeitos que precisam ser corrigidos, e a correção só resultará do grande empenho e da luta dos interessados. A estrutura dos artigos fornece uma possibilidade imensa de criação de direitos. Porém, fazer leis é fácil;o problema é colocá-las em prática. Sem a vigilância dos interessados, as coisas não saem do papel, sobretudo quando demandam prestações positivas por parte do Estado.

Como se determina o patrimônio cultural de um país? Quem tem autoridade para defini-lo? 
A ideia de patrimônio cultural foi revolucionada pela Constituição de 1988. A mais antiga legislação de proteção do patrimônio cultural ainda vigente é o Decreto de Lei 25/1937, que institui o tombamento. Esse decreto versa sobre a proteção do patrimônio histórico e artístico.A Constituição de 1988, por sua vez,diz que constituem o patrimônio cultural brasileiro “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, a ação, a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Ou seja, o que era o todo, virou uma parte, e o patrimônio cultural corresponde, hoje, não só ao patrimônio histórico e artístico, mas também a muitas outras coisas. De acordo com a própria Constituição, são “as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. Com isso, em minha opinião, o critério para a proteção não é mais o das pessoas com elevado saber cultural, como diziam as leis que convocavam os membros de conselhos de cultura, mas o de pertencimento aos diversos grupos formadores da sociedade brasileira.
Hoje em dia, temos uma grande dicotomia entre o modo de proteção e a autoridade designada para garanti-la, pois isso continua sendo feito de maneira tradicional. A constituição diz: “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro”. A interpretação tradicional do direito vem entendendo que essa participação da comunidade é apenas no sentido de fazer a indicação dos que bens ela quer ver protegidos. Creio que isso é muito pouco para uma expressão tão forte no âmbito constitucional. Penso que as comunidades têm responsabilidades que vão desde a indicação, passam pela efetiva proteção, chegando até a definição de certos bens como integrantes de seu patrimônio cultural.Podemos comparar com o chamado bem de família. Uma família que tem determinado bem e quer vê-lo excluído da possibilidade de ações judiciais, pode designá-locomo bem de família. Creio que a Constituição admitiu, sobretudo com esse pluralismo que ela estabelece na definição do que sejam bens componentes do patrimônio cultural, a possibilidade de uma comunidade decidir o que é um bem cultural de comunidade.
Há um parâmetro normativo novo, mas ainda adotamos uma prática antiga, em que apenas um conselho, geralmente de notáveis, define o que é patrimônio cultural. O Estado precisa ampliar esse leque de possibilidades de pessoas ou estruturas autorizadas ao reconhecimento definitivo dos bens enquanto integrantes do patrimônio cultural.

O tombamento de bens materiais visa garantir sua preservação, enquanto o registro de bens imateriais – manifestações culturais de toda ordem – como patrimônio cultural leva ao desenvolvimento de um plano de salvaguarda que oferece condições para sua perpetuação. Transformações e mudanças, porém, são características inerentes a toda e qualquer manifestação cultural, além de condição para a sua permanência ao longo do tempo. O registro impõe limites à transformação das práticas culturais? Há o risco de, com isso, tornar-se uma ameaça?
Durante muito tempo, o direito brasileiro contemplou o tombamento como único instrumento de proteção. Até 1988, o tombamento servia para a proteção de todos os bens corpóreos,móveis ou imóveis, ainda que houvesse algumas inadequações. Bens imateriais são inadequados para o tombamento porque este tem dois objetivos expressos: o primeiro é a tentativa de proibir a destruição; o segundo é o de controlar as modificações. A Constituição de 1988 diz que “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. Essa expressão “e de outras formas de acautelamento e preservação” parece ser prosaica, mas tem um significado jurídico importantíssimo. Geralmente, o sistema de proteção do patrimônio culturalconfronta-se com um direito muito forte e muito perene na tradição ocidental: o direito à propriedade. Como quase todas as formas de afetação à propriedade já vem especificadas na Constituição, o legislador não pode inovar. No campo cultural, a expressão “outras formas de acautelamento e preservação” dá margem à inovação. Então, de 1988 para cá, outros instrumentos foram sendo criados. Alguns deles, apenas na dimensão administrativa, como a ideia da proteção da paisagem cultural; outros,são um tanto quanto curiosos ou mesmo inadequados no que concerne à norma que os cria,como é o caso do registro dos bens imateriais, instituído pelo Decreto 3.551 do ano de 2000.
O registro estimula a permanência de algumas manifestações culturais a partir da ideia de valorização de determinados processos e produtos. Efetivamente, o que o registro propicia é um reconhecimentomomentâneo das práticas às quais se deseja obter a memória. Sem dúvida, corre-se esse risco que você percebeu. Mas o registro, diferentemente do tombamento, não tem os objetivos de impedir a destruição ou de controlar de forma imperiosa as modificações. Ele trabalha com a ideia de estimular a permanência. Se esses estímulos são adequados ou inadequados, isso deve ser discutido pelos interessados em cada manifestação. O registro não inibe que uma manifestação que foi reconhecida promovavariações, mas essas variações ficam reconhecidas no plano cultural de maneira genérica e não de maneira específica, como resultaria do reconhecimento formal.
Como advogado, o queeu posso dizer é que se esses estímulos de permanência são considerados inadequados, os interessados devem lutar pela modificação da legislação ou pela criação de outras estruturas de reconhecimento das variações.

Como devem ser estabelecidos os direitos autorais no caso dos saberes coletivos? Considerando o fato de que comunidades não são herméticas, ou seja, que não existe sobreposição rígida entre pessoas, culturas e/ou territórios, quem detém a propriedade desses saberes?
Vou fazer uso aqui de uma expressão de Umberto Eco, num livro que ele partilha com Jean-Claude Carriére: algumas questões do âmbito da cultura são como identificar a localização de uma bola de golfe num oceano com tormentas. É muito difícil encontrar uma regra geral que abranja todas as situações, que são quase utópicas. Há muitas questões envolvidas, como a própria definição de comunidade.
A Constituição brasileira estabelece a diferença entre comunidade e sociedade. Sociedade é um ente mais abstrato de laços coletivos – do ponto de vista dos interesses sociais –, mas não envolve laços afetivos. A comunidade, por sua vez, tem afetividade. Isso faz com que, em uma comunidade, as pessoas se identifiquemnão apenas pelo território em que vivem ou por práticas culturais comuns, mas, principalmente, pelo afeto. Se falarmos da comunidade hip hop, por exemplo, o território não interessa muito, mas todosque compartilham essa prática sentem-se, de alguma forma, afetivamente ligados. Ou seja, pode haver outros elementos que façam com que o território não seja soberano na definição de uma comunidade. O mais importante são os laços de proximidade e afeto.
A questão do direito autoral é melindrosa, porque a produção autoral ganhou essa feição de proteção liberal apenas com o advento do liberalismo e do individualismo. Antes, as criações autorais de uma geração tinham uma marca de continuidade muito forte em relação à geração anterior – ainda que, às vezes, de maneira antagônica.
Shakespeare, por exemplo, costuma ser acusado de plágio. Quem faz essa acusação, porém, o faz a partir do parâmetro do direito autoral atual, em que se considera plágio o fato de alguém utilizar mais do que tantas palavras de outrem. Essas pessoas não percebem o modo de criação coletiva que se praticava por volta dos anos 1600 – Shakespeare viveu de 1564 a1616. O próprio tema de Hamlet já circulava na época: um irmão mata o outro, casa com a esposa do mortoe o filho vai se vingar. Shakespeare deu o acabamento.
De toda forma, fico muito confuso em relação a essa questão dos direitos autorais para as coletividades e ainda estou elaborando minha opinião. Minha confusão se dá pois costumamos reclamar do excessivo rigor da lei autoral brasileira, que é uma das que mais concentram direitos na mão, não propriamente dos artistas, mas dos detentores dos direitos autorais; e quando existe essa prática da partilha social, queremos privatizar. Não consigo resolver bem essa ambiguidade. Mas creio ser possível estabelecer legislações fomentadoras de incentivos para essas comunidades. Aqui no estado do Ceará, existe a lei dos Tesouros Vivos da Cultura, que estabelece o reconhecimento de mestres, grupos e comunidades. O resultado desse reconhecimento – pelo menos o previsto na lei, não que isso efetivamente ocorra, pois o direito é passível de violação – é que essas comunidades passam a ter preferência na execução de políticas públicas. Então, para uma dimensão coletiva, os reconhecimentos coletivos mostram-se, na minha compreensão atual, mais adequados do que os reconhecimentos individuais.

Atualmente, os principais documentos jurídicos relacionados à cultura defendem o pluralismo e a diversidade das expressões culturais. O que fazer, porém, quando práticas culturais particulares se chocam com direitos ditos universais?

Recentemente, foi aprovada a Lei nº 15.299, que “regulamenta a vaquejada como prática desportiva e cultural no estado do Ceará”. Repudio esse título, pois não se pode consagrar uma determinada prática apenas por ela vir se repetindo na tradição. É bom repetir o passado apenas quando ele é dignificador e está de acordo com os valores que foram eleitos para buscarmos no futuro. A Constituição brasileira estabeleceu, de maneira muito clara, a dignidade da pessoa humana dentre seus fundamentos. Se observarmostodo o contexto,trata-se da dignidade humana em sentido amplo, inibindo-se, inclusive, os maus-tratos aos animais.
Claro que há uma discussão imensa sobre a adoção de maneira universal de determinados valores em detrimento de outros,porque, geralmente,são os que detêm o poder que definem quais são os valores corretos.Entretanto, me parece que há um consenso muito forte a respeito da ideia de dignidade do ser humano – individualmente, em coletividade e no ambiente em que vive. Práticas culturais, portanto, só devem ser protegidas casose compatibilizem com os valores dignificadores constitucionalmente estabelecidos. Se este não for o caso, não devemos simplesmente eliminá-las ou esquecê-las, pois aprendemos com os nossos erros, mas é preciso que tais práticas deixem de produzir seus efeitos. É por isso que os alemães conservam alguns campos de concentração –não é para matar pessoasnovamente; é por isso que conservamos as senzalas – não é para reestabelecer a escravidão;é por isso que conservamos instrumentos de torturas –não é para repetir os malefícios contra as pessoas.O parâmetro a ser seguido é o de vincular nossa experiência do passado com aquilo que projetamos para o futuro. Às vezes, precisamos romper com o passado, sem nunca esquecer o que nele aconteceu.

Nesse sentido, no Brasil, diversas comunidades artesanais adaptaram sua produção de modo a conciliá-la com a nova legislação ambiental.
Sou completamente a favor dessas mudanças, pois não podemos ser escravos de nada, nem do passado.Se, em sua prática cultural, você não busca o seu próprio refinamento humano, visando uma melhor convivência com as demais pessoas e com a natureza, há alguma coisa errada, e esse erro deve ser corrigido.

Direitos culturais são também acompanhados de deveres?
Sem dúvida. Isso é da própria lógica do direito:a todo direito corresponde um dever, e identificamos quem são os credores e os devedores desse direito observando pontualmente o direito sobre o qual estamos falando.Na Constituição, está dito: “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo (...) ao patrimônio histórico e cultural”. Então, nesse caso, o dever de não lesar é de todos, assim como é de todos o direito de fiscalizar essa lesão e de buscar reparação. Quando a Constituição diz “a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais”, o devedor do direito é o Estado, e o credor é aquele que demonstra ao Estado que tem a necessidade e a possibilidade de fazer a criação segundo as regras estabelecidas, seja num edital, seja num projeto.Chamar a atenção para os deveres no âmbito do patrimônio cultural é muito importante, porque é responsabilidade de todos: todos nós temos a responsabilidade para com a defesa dos bens patrimoniais que nos dizem diretamente respeito, mas também, em virtude da ideia pluralista,temos que respeitar aquilo que os outros grupos da sociedadetêm definido em seu favor como patrimônio cultural. 

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